O Brasil é o país que concentra o maior número de pessoas a cultuarem uma das
manifestações da Grande Mãe como Iemanjá, a deusa ancestral das águas, Senhora
do Mar. Só perde para a Índia, onde inúmeras deusas são cultuadas até hoje.
Anualmente, às vésperas do Ano Novo e no dia 2 de fevereiro, milhões de
pessoas levam suas oferendas e orações para as praias brasileiras, ou saem em
procissões marítimas ou fluviais, similares às antigas cerimônias egípcias e
romanas – Navigium Isidi – dedicadas a Ísis, Deusa Mãe protetora dos viajantes e
das embarcações.
Apesar da devoção brasileira a Iemanjá, seu culto não é nativo - ele foi
trazido ao Brasil no século XIII pelos escravos da nação ioruba. Yemojá ou YéYé
Omo Ejá, a “Mãe cujos filhos são peixes”, era o orixá dos Egbá, a nação ioruba
estabelecida outrora perto do rio Yemojá, no antigo reino de Benin. Devido a
guerras, os Egbá migraram e se instalaram às margens do rio Ogun, de onde o
culto a Iemanjá foi trazido pelos escravos para o Brasil, Cuba e Haiti.
Nesses países, Iemanjá passou a ser venerada como a “Rainha do Mar”, orixá
das águas salgadas, apesar de sua origem ter sido “o rio que corre para o mar”,
sua saudação sendo Odo-Yiá, que significa “Mãe do Rio”.
Analisando os nomes Ya / man / Ya e Ye / Omo / Ejá conforme a “Lei de Pemba”
– a grafia sagrada dos orixás, postulada pela Umbanda Esotérica, encontram-se os
mesmos vocábulos sagrados que significam “Mãe das águas, Mãe dos filhos da água
(peixes) e Mãe Natureza”.
Iemanjá é considerada pela Umbanda Esotérica como uma das sete Vibrações
Originais, o princípio gerador receptivo, a matriz dos poderes da água, a
representação do eterno e Sagrado Feminino. Portanto, Iemanjá personifica os
atributos lunares e aquáticos da Grande Mãe, de padroeira da fecundidade e da
gestação, inspiradora dos sonhos e das visões, protetora e nutridora, mãe
primeva que sustenta, acalenta e mitiga o sofrimento dos seus filhos de fé.
No entanto, por mais que Iemanjá seja reconhecida e venerada no Brasil, ela
não representa a Mãe Ancestral nativa, que tenha sido cultuada pelas tribos
indígenas antes da colonização e da chegada dos escravos.
Infelizmente, muito pouco se sabe a respeito das divindades e dos mitos
tupi-guarani. A cristianização forçada e a proibição pelos jesuítas de qualquer
manifestação pagã, destruiu ou deturpou os vestígios de Tuyabaé-cuáa, a antiga
tradição indígena, a sabedoria dos velhos payés.
Segundo o escritor umbandista W.W. da Matta e Silva e seus discípulos Rivas
Neto e Itaoman, a raça vermelha original tinha alcançado, em uma determinada
época distante, um altíssimo patamar evolutivo, expresso em um elaborado sistema
religioso e filosófico, preservado na língua-raiz chamada Abanheengá, da qual
surgiu Nheengatu, a “lingua boa”, origem dos vocábulos sagrados dos dialetos
indígenas.
Com o passar do tempo, a raça vermelha entrou em decadência e, após várias
cisões, seus remanescentes se dispersaram em diversas direções. Deles se
originaram os tupi-nambá e os tupi-guarani, que se estabeleceram em vários
locais na América do Sul.
As concepções do tronco tupi eram monoteístas, postulando a existência de uma
divindade suprema, um divino poder criador (às vezes chamado de Tupã) que se
manifestava por intermédio de Guaracy (o Sol) e Yacy (a Lua) que, juntos,
geraram Rudá (o amor) e, por extensão, a humanidade. O culto a Guaracy era
reservado aos homens, que usavam os tembetá, amuletos labiais em forma de T,
enquanto as mulheres veneravam Yacy e Muyrakitã, uma deusa das águas, e usavam
os amuletos em forma de batráquios e felinos, pendurados no pescoço ou nas
orelhas.
Guaracy era a manifestação visível e física do poder criador representado
pelo Sol. Apesar deste astro ser considerado o princípio masculino na visão
dualista atual, a análise dos vocábulos nheengatu do seu nome revela sentido
diferente. Guará significa “vivente”, e cy é “mãe”, o que formaria a “Mãe dos
seres viventes”, a força vital que anima todas as criaturas da natureza, a luz
que cria a vida animal e vegetal. Também em outras tradições e culturas
(japonesa, nórdica, eslava, báltica, australiana e nativa americana), o Sol era
considerado uma Deusa, o que nos faz deduzir que, para os tupi, a vida e a luz
solar provinham de uma Mãe - Cy - que só mais tarde foi transformada em Pai.
Yacy era a própria Mãe Natureza, seu nome sendo composto de Ya (senhora) e Cy
(mãe), a senhora Mãe, fonte de tudo, manifestada nos atributos da Lua, da água,
da natureza, das mulheres e das fêmeas.
Cy - ou Ci - representa, portanto, a origem de todas as criaturas, animadas
ou não, pois tudo o que existe foi gerado por uma mãe que cuida da sua
preservação, do nascimento até a morte. Sem Cy (mãe), não há nem perdura a vida,
pois ela é a Mãe Natureza, o principio gerador e nutridor da vida.
Na língua tupi existem váris nomes que especificam as qualidades maternas:
Yacy, a Mãe Lua; Amanacy, a mãe da chuva; Aracy, a mãe do dia, a origem dos
pássaros; Iracy, a mãe do mel; Yara, a mãe da água; Yacyara, a mãe do luar;
Yaucacy, a mãe do céu; Acima Ci, a mãe dos peixes; Ceiuci, a mãe das estrelas;
Amanayara, a senhora da chuva; Itaycy, mãe do rio da pedra, e tantas outras mães
– do frio e do calor, do fogo e do ouro, do mato, do mangue e da praia, das
canções e do silêncio.
As tribos indígenas conheciam e honravam todas as mães e acreditavam que elas
geravam seus filhos sozinhas, sem a necessidade do elemento masculino,
atribuindo-lhes a virgindade - o que também em outras culturas simbolizava sua
independência e autossuficiência. Em alguns mitos e lendas, as virgens eram
fecundadas por energias numinosas em forma de animais (serpente, pássaro, boto),
forças da natureza (chuva, vento, raios), seres ancestrais ou divindades.
A explicação da omissão, na mitologia indígena, do elemento masculino na
criação era o desconhecimento do papel do homem na geração da criança, além do
profundo respeito e reverência pelo sangue menstrual que, ao cessar
“milagrosamente”, se transformava em um filho. Somente pela interferência dos
colonizadores europeus e pela maciça catequese jesuíta que, na criação do homem,
o Pai assumiu um papel preponderante, o Filho tornou-se o segundo na hierarquia,
salvador da humanidade - como Jurupary, e à Mãe coube apenas a condição de
virgem (como Chiucy).
Porém, apesar do zelo dos missionários para erradicar os vestígios dos cultos
nativos da cultura indígena e dos escravos, muitas de suas tradições sobrevivem
nas lendas, nos costumes folclóricos, nas práticas da pajelança e encantaria que
estão ressurgindo, cada vez mais atuantes, saindo do seu ostracismo secular.
Outro arquétipo da Mãe Ancestral é descrito no mito amazônico da Boiúna, a
Cobra Grande, dona das águas dos rios e dos mistérios da noite. Apresentada como
um monstro terrível que vive escondido nas águas escuras do fundo do rio e ataca
as embarcações e pescadores, a Boiúna ou Cobra Maria é, na verdade, a Face
Escura da Deusa, a Mãe Terrível, a Ceifadora, que tanto gera a vida no lodo como
traz a morte, no eterno ciclo da criação, destruição, decomposição e
transformação.
Outro aspecto da Mãe Escura é Caamanha, a “Mãe do Mato”, que protege as
florestas e os animais silvestres, e pune, portanto, os desmatamentos, as
queimadas e a violência contra a Natureza. Pouco conhecida, ela foi transformada
em dois personagens lendários: Curupira e Caapora. Descritos como seres
fantasmagóricos, peludos, com os pés voltados para trás, às vezes com um aspecto
feminino, são os guardiões das florestas, que levavam os caçadores e invasores
do seu habitat a se perderem nas matas, punindo-os com chicotadas, pesadelos ou
até mesmo a morte.
Nas lendas guarani relata-se a aparição da “Mãe do Ouro”, que surge como uma
bola de fogo ou manifesta-se nos trovões, raios e ventos, mostrando a direção da
mudança do tempo. Em sua representação antropomórfica, ela torna-se uma linda
mulher que reside em uma gruta no rio, rodeada pelos peixes e de onde se estende
nos ares como raios luminosos, ou então surge na forma de uma serpente de fogo,
punindo os destruidores das pradarias.
Em sua versão original, ela era considerada a guardiã das minas de ouro, que
seduzia os homens com seu brilho luminoso, afastando-os das jazidas. Seu mito
confunde-se com o do Boitatá, uma serpente de contornos fluídicos, plasmada em
luz com dois imensos olhos, guardando tesouros escondidos, reminiscência dos
aspectos punitivos da Mãe Natureza, defendendo e protegendo suas riquezas. A
deturpação cristã do mito punitivo pode ser vista na figura da “Mula sem
Cabeça”, metamorfose da concubina de padre, que assombra os viajantes nas noites
de sexta-feira (dia dedicado, nas culturas pagãs, às deusas do amor, como
Astarte, Afrodite, Vênus, Freyja) e do Teiniágua, lagarto encantado que se
transforma em uma linda moça para seduzir os homens, desviando-os dos seus
objetivos.
Quanto ao significado esotérico de Muyrakitã, devemos decompor seu nome em
vocábulos para compreender sua simbologia feminina: Mura - mar, água; Yara -
senhora, deusa; Kitã - flor. Podemos então interpretá-lo como “A deusa que
floriu das águas” ou “A Senhora que nasceu do mar”. Esta divindade aquática,
considerada a filha de Yacy, era reverenciada pelas mulheres que usavam amuletos
mágicos chamados ita-obymbaé, confeccionados com argila verde, colhida nas
noites de Lua Cheia no fundo do lago sagrado Yacy-Uaruá (“Espelho da Lua”),
morada de Muyrakitã. Esses preciosos amuletos só podiam ser preparados pelas
ikanyabas ou cunhãtay, moças virgens escolhidas desde a infância como
sacerdotisas do culto de Muyrakitã - vetado, portanto, aos homens.
Nas noites de Lua Cheia, as cunhãtay, devidamente preparadas, esperavam que
Yacy espalhasse sua luz sobre a superfície do lago e, então, mergulhavam à
procura da argila verde. A preparação das virgens incluía jejum, cânticos e sons
especiais (para invocar os poderes magnéticos da Lua), além da mastigação de
folhas de jurema, uma árvore sagrada que contém um tipo de narcótico que
facilitava as visões. Enquanto as cunhãs mergulhavam, as outras mulheres ficavam
nas margens do lago entoando cânticos rítmicos ao som dos mbaracás (chocalhos).
Depois de “recebida” a argila das mãos da própria Muyrakitã, ela era modelada em
discos com formato de animais, sendo deixado um pequeno orifício no centro. Em
seguida, todas as mulheres realizavam encantamentos mágicos, invocando as
bênçãos de Muyrakitã e Yacy sobre os amuletos, até que Guaracy, o Sol, nascia,
solidificando a argila com seus raios.
Esses amuletos, que ficaram conhecidos com o nome de muiraquitã, tinham cor
verde, azul ou cor de azeitona e eram usados no pescoço ou na orelha esquerda
das mulheres. Acreditava-se que eles conferiam proteção material e espiritual e
que podiam ser utilizados para prever o futuro, nas noites de Lua Cheia, depois
de submersos na água do mesmo lago e colocados na testa das cunhãs, invocando-se
as bênçãos de Yacy e Muyrakitã.
No nível exotérico, profano, o muiraquitã é conhecido como um talismã
zoomorfo, geralmente em forma de sapo, peixe, serpente, tartaruga ou de felinos,
talhado em pedra (nefrita, esteatita, jadeíta ou quartzito), bem polido, ao qual
se atribuíam poderes mágicos e curativos. Foram encontrados vários deles na área
do baixo Amazonas, entre as bacias dos rios Trombetas e Tapajós, sendo chamados
de “pedras verdes das Amazonas”. Poderia ser uma confirmação do mito das
Amazonas ou Ycamiabas, as “mulheres sem homens”, como foram chamadas pelo padre
Carvajal, da expedição de Francisco de Orellana, em 1542.
Os relatos míticos as descrevem como mulheres altas, belas, fortes e
destemidas, longos cabelos negros, trançados, tez clara, que andavam despidas e
utilizavam com maestria o arco e a flecha para guerrear e caçar. Diz a lenda que
elas escolhiam anualmente homens para serem os pais de seus filhos,
presenteando-os com muiraquitãs. Outras fontes afirmam que elas usavam
ornamentos de pedras verdes esculpidos em forma de animais como objetos de troca
com visitantes ou tribos vizinhas.
Os missionários atribuíam aos índios tapajós a origem dos muiraquitãs, mas
eles eram apenas seus portadores, não os fabricantes, exibindo-os como símbolos
de poder ou riqueza, ou ainda como compensação na realização de ritos fúnebres,
nas cerimônias de casamento ou para selar alianças e acordos de paz entre as
tribos.
Ocultos em mitos, lendas e crenças, existem ainda muitos resquícios das
antigas tradições e cultos indígenas. Descartando as sobreposições e distorções
cristãs e literárias, poderemos resgatar a riqueza original das diversas e
variadas apresentações da criadora ancestral brasileira, Mãe da natureza e de
tudo o que existe, existiu e sempre existirá.
Cabe aos estudiosos e pesquisadores atuais desvendar os tesouros históricos
do passado indígena brasileiro, com isenção de ânimo e sem distorções, em uma
sincera dedicação e lealdade à verdade original, para oferecer às nossas mentes
as provas daquilo que os nossos corações femininos sempre souberam, ou seja,
"que a Terra é a nossa Mãe, que nos tempos antigos os seres humanos veneravam e
oravam para uma Criadora, que abria os portais da vida e da morte, cujos templos
eram a própria Natureza, que somos todos irmãos por sermos seus filhos,
interligados por fazermos parte da teia cósmica e telúrica da Sua
Criação”.
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